“Eu sou a moda brasileira” — a trajetória política da estilista Zuzu Angel
Zuleika de Souza Netto foi uma estilista mineira que ficou conhecida internacionalmente não só pelo seu trabalho revolucionário na moda, mas também pela incessante procura pelo seu filho desaparecido na época da ditadura militar. Um fim trágico com um legado histórico, emocionante e importantíssimo de ser lembrado sempre: Zuzu Angel, é o nome pelo qual essa mulher corajosa, em tantos sentidos, ficou conhecida.
“Roupa não tem importância. Moda tem. É um documento histórico. É criação e liberdade” - Zuzu Angel.
Estilista, empresária e chefe de família, Zuzu era visionária, criativa e destemida, sempre trazendo algo de inovador para suas criações. Foi ela quem trouxe para a moda nacional o termo fashion designer. Mas se pudermos resumir em poucas palavras o papel que essa mulher teve para a história, definitivamente diria que foi o de escancarar o quão equivocados estamos quando associamos moda à superficialidade - e como esse veículo de comunicação pode ser um manifesto cultural que reflete a época e a sociedade a qual estamos inseridos, podendo assim modificá-la de alguma maneira.
“No meu país, acham que moda é frivolidade, futilidade. Tento lhes dizer que moda é comunicação, além de garantir o emprego de muita gente.” - NY, 1975.
De costureira a designer de moda
Para introduzirmos a história dessa figura tão relevante para a moda brasileira, trago aqui um rápido resumo sobre a sua origem. Zuzu nasceu em Curvelo - MG e passou sua infância em Belo Horizonte, onde ajudava a mãe com as despesas costurando para fora. Suas brincadeiras de criança continham um pouco da essência criativa que viria se manifestar ainda mais forte no futuro, usando retalhos para criar modelos para as bonecas e para suas primas. Mudou-se para Salvador na adolescência, fato que influenciou diretamente seu estilo e suas criações.
Pioneira em investir em sacolas personalizadas com o seu logotipo - o anjo que se tornou a marca registrada de suas criações.
Aos 18, foi morar sozinha no Rio de Janeiro, buscando o reconhecimento profissional e a independência financeira. Conseguiu trabalhar por conta própria fazendo roupas para a vizinhança, até conseguir um emprego registrado em um ateliê de moda. Nos anos 50, em uma época onde a moda feminina brasileira era bem padronizada, ela consegue iniciar seu trabalho como estilista e basicamente chega para dar uma modificada no ambiente, digamos assim. Nos anos 70, já com uma bagagem e uma longa jornada, investiu todas as suas economias na abertura de sua primeira loja de roupas em Ipanema. Ao longo dos anos, sendo reconhecida por uma clientela da zona sul do Rio de Janeiro, teve a oportunidade de expandir seu negócio e realizar desfiles nos Estados Unidos - onde sempre abordava a cultura brasileira. Peças coloridas, às vezes com pinturas e desenhos, sempre muito bem costuradas.
Elke Maravilha, modelo e amiga, vestindo Zuzu Angel. Chegou a ser presa pelo regime militar na época por rasgar um cartaz de procurados políticos e desacatar um militar em defesa de Stuart, filho de Zuzu.
A essência da moda Zuzu Angel
Em uma época onde as passarelas internacionais ditavam a moda no Brasil e os estilistas locais se interessavam apenas em reproduzir as referências estrangeiras, Zuzu foi pioneira em explorar as riquezas brasileiras e incorporá-las ao seu trabalho. Se interessava por materiais considerados banais, mas que estavam presentes no cotidiano brasileiro. Em suas peças, podemos ver inspirações do folclore, temas tropicais e referências de diferentes regiões do país, além dos detalhes como os babados e os fuxicos. Tecidos como chita, rendão e seda, além de claro, os materiais inusitados e inovadores: conchas, bambu, contas de jacarandá e pedras mineiras - assim como os franceses bordavam pedras preciosas, Zuzu bordava conchas e pedras nacionais.
Começou fazendo roupas sob encomenda e em seguida, criou uma pequena coleção de saias, a Zuzu Saias. Uma das primeiras peças inovadoras de sua autoria foi a saia com pano de colchão, um tecido que permitiu ela explorar uma estamparia totalmente diferente do que era visto no momento, nos tons de verde, rosa e bege.
Com um ateliê de costura dentro de casa, seus preços eram acessíveis (quando comparados aos de outros designers da época), o que fez com que sua popularidade aumentasse ainda mais, oferecendo pequenas linhas de roupas prontas para um nicho de mercado que se formava. Seus relacionamentos cresciam e ela conquistava cada vez mais espaço na elite carioca, chegando a vestir as mulheres dos presidentes vigentes naqueles anos.
A moda brasileira no exterior
Zuzu foi a primeira marca brasileira a repercutir internacionalmente no prêt-à-porter de luxo. Através do boca a boca, em 1970 ela foi convidada a apresentar uma coleção pela Bergdorf Goodman (uma loja de departamentos de luxo com sede na Quinta Avenida, em NY). Apresentou seus vestidos coloridos de algodão com vários detalhes que tinham como referência o norte brasileiro e o cangaço, em um desfile nomeado como Maria Bonita. Com uma crítica ultra positiva, logo ela estaria com suas peças à venda em várias lojas de Nova York.
Começando por Kim Novak, atriz de Hollywood que frequentou seu ateliê e levou consigo umas 3 peças, sua clientela estrangeira só aumentava e com o tempo, passou a contar com
Liza Minnelli, Joan Crawford, Yvone de Carlo, e Margot Fonteyn. Quando ela começa a fazer sucesso nos Estados Unidos, o jornalismo brasileiro passa pela primeira vez a empregar o termo design para um trabalho que até então era chamado de figurinista, modista ou costureira. “Um designer engloba o modista, o figurinista e o costureiro. O ‘designer’ é tudo.” (Zuzu para Curvelo Notícias, dezembro de 1971).
Peças do desfile Maria Bonita.
Época de regime militar
Nos anos 40, conheceu seu marido Norman, um americano que visitava a casa de seus pais em BH. Casaram-se poucos anos depois e tiveram seu primeiro filho: Stuart Angel Jones, um nome que viria a ter uma grande relevância na história do seu legado. Tiveram mais duas filhas, e nos anos 60, desquitram-se - pois ainda não existia o divórcio. Algo que era bem mal visto pela sociedade da época.
Seu filho Stuart, ao final dos anos 60, era estudante de economia e militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), opositor ao governo em época de ditadura no Brasil. Perseguido por militares, em 1970 ele entra para a lista de desaparecidos políticos. Sua mãe o procurou incessantemente durante anos, batendo de porta em porta em quartéis, e sua posição social fazia com que ela conseguisse entrar em contato com diferentes nomes de relevância, tanto na política brasileira quanto no exterior. Suplicou por respostas até para o próprio ex-presidente do Brasil, o ditador Ernesto Geisel. Alguns anos mais tarde, ela recebe uma carta de um homem que testemunhou o que haviam feito com seu filho - que de fato, prenderam e torturaram até a morte.
Em “Zuzu Angel - o filme” (2006), podemos entender melhor como se deu essa parte da história em mais detalhes, toda a jornada de busca e sofrimento de Zuzu na tentativa de encontrar seu filho, o direito de sepultá-lo (já que seu corpo nunca foi encontrado) e fazer justiça pelo fato ocorrido, além de se tornar porta-voz de outras mães que tiveram filhos presos ou assassinados.
No dia que se seguiu à descoberta de sua morte, Zuzu resolve usar o seu próprio trabalho para tentar ser ouvida de alguma forma: ela conseguiu fazer, de forma artística, sutil, forte e emocionante, um desfile-protesto (chamado O Anjo Desamparado) dentro do consulado brasileiro em Nova York, ao som da música Tristeza, de Vinícius de Moraes - burlando o decreto sobre falar mal do governo brasileiro fora do país. Dessa vez, seus vestidos não continham mais aquelas estampas alegres que falavam das belezas do nosso país, mas sim canhões e tanques de guerra, manchas vermelhas, pássaros pretos enjaulados com seus anjinhos tristes - em homenagem ao seu filho Stuart.
Desfile-protesto de Zuzu Angel em 1971 é encontrado nos arquivos da TV Cultura
O vestido branco com desenhos de estética infantil. Visto de longe, se parece como um vestido comum, mas observando os detalhes de perto pode-se perceber os canhões, aviões e os militares em meio às flores e o sol sorrindo feliz. Assim como era pintado o cenário brasileiro, de 1964 a 1985.
Detalhes do bordado do vestido, com o sketch ao lado - um militar segurando a arma em forma de desenho de criança.
Como uma crítica política, o desfile foi realizado no consulado (considerado território brasileiro), sendo essa uma estratégia para desviar a possibilidade de ser enquadrada na Lei de Segurança Nacional - uma lei que tinha como objetivo proteger o Estado contra um “inimigo interno”, que poderia ser aplicada a qualquer pessoa considerada desobedecendo a ordem do regime militar. Felizmente, a crítica de moda internacional captou o recado e no dia seguinte, a manchete era: “Designer de moda pede pelo filho desaparecido”.
“Há quatro meses, quando comecei a pensar nela, eu me inspirei nas flores coloridas e nos belos pássaros do meu país. Mas, então, de repente, esse pesadelo entrou em minha vida e as flores perderam o colorido, os pássaros enlouqueceram e produzi uma coleção com enredo político. É a primeira vez, em toda a história da moda, que isto acontece. Assim, espero que essa noite conseguirei fazê-los pensar no assunto, com esta coleção.”
Nesse desfile, Zuzu sobe na passarela com um vestido preto com diversas cruzes penduradas. Um contraste bem evidente a todos os seus desfiles anteriores.
“Eu continuarei a bater em todas as portas e anunciarei ao mundo, com a minha moda, o que está acontecendo no Brasil. É essa a minha arma.”
A morte e o legado de Zuzu
Com telefones grampeados e perseguida por anos, Zuzu deixou uma carta a seus amigos caso algo lhe acontecesse, dizendo: “se algo vir a acontecer comigo, se eu aparecer morta por acidente, assalto ou outro qualquer meio, terá sido obra dos mesmos assassinos do meu amado filho” (1975). Em 14 de abril de 76, dirigindo seu carro de volta pra casa no túnel Dois Irmãos no Rio de Janeiro, ela foi fechada por um outro veículo não identificado e perdeu a direção, capotando o carro e morrendo no local. Hoje, o túnel leva o seu nome como uma homenagem.
Só em 2014, com a Comissão Nacional da Verdade, foi confirmada a participação do Estado Brasileiro na morte de Zuzu Angel, através de documentos que provaram o fato com testemunhas que estavam no local no dia do “acidente”. Em 2019, sua filha Hildegard Angel (jornalista que construiu, organizou e estruturou todo o legado do trabalho de sua mãe) finalmente conseguiu as certidões de óbito de sua mãe e de seu irmão Stuart, ambas as mortes identificadas como “causadas pelo Estado Brasileiro, no contexto de perseguição sistêmica e generalizada à população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985".
Zuzu já propunha um posicionamento político quando trouxe elementos nacionais para as suas roupas, sempre questionando a moda nacional. Quando criou peças sem gênero e peças que dispensavam o uso de sutiã e cinta liga, com uma modelagem nova que sustentava o corpo feminino, questionando todos aqueles rígidos padrões que regiam o senso comum. Seu trabalho reforçava mudanças sociais por meio de peças de roupas.
“O caminho para a libertação da mulher está na negação da própria moda que a escraviza” - Zuzu para o Jornal do Brasil, 1969.
É interessante revisitarmos essa história que basicamente aconteceu há 50 anos atrás e compararmos com a realidade atual. As semelhanças, o que permanece e já deveria ter sido mudado, modificado. Olhar para o passado e manter a história viva, para termos consciência do que aconteceu e não permitir que aconteça de novo. Além de claro, contemplarmos aqueles que abriram portas para que hoje possamos expandir o trabalho, o design e a arte brasileira pelo mundo.
Imagem de acervo pessoal, tirada na exposição “Ocupação Zuzu Angel”, em 2014.
Por fim, deixo aqui uma das poucas imagens que tenho da minha visita à exposição realizada no Itaú Cultural, da “Ocupação Zuzu Angel”. Jovem estudante de moda que era na época, em meu primeiro ano de faculdade, fui agraciada com essa experiência e todas essas informações que tanto mexeram comigo e com a minha visão de mundo no geral - principalmente, com o meu propósito ao estudar moda. Fotografei uma pequena frase em uma das mesas, e até hoje, posso dizer que esse é um questionamento que está constantemente presente no meu dia a dia. O que uma escolha de roupa comunica pro mundo? Como passar uma mensagem através de uma roupa? Como um micro, um detalhe, pode se tornar macro? E por fim: de que maneira a roupa que veste pode ser política e influenciar, modificar uma história, uma sociedade em uma determinada época?
Referências Bibliográficas:
Zuzu Angel (filme) - 2006
Linha Direta Justiça - Zuzu Angel (2003)
"A MARCA DO ANJO: A TRAJETÓRIA DE ZUZU ANGEL E O DESENVOLVIMENTO DA IDENTIDADE VISUAL DE SUA GRIFE" por Priscila Andrade, em Iara - Revista de moda, cultura e arte.
Links:
https://memoriasdaditadura.org.br/biografias-da-resistencia/zuzu-angel/
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57366178
https://www.fashionbubbles.com/historia-da-moda/zuzu-angel-2/
https://iconografiadahistoria.com.br/2020/12/11/zuzu-angel-uma-mulher-incansavel-na-busc
https://atalmineira.com/2020/08/30/quem-e-essa-mulher-um-video-para-quebrar-o-silencio-e
-nao-deixar-esquecer-o-terror-do-estado/
https://harpersbazaar.uol.com.br/cultura/zuzu-angel-e-tema-de-exposicao-no-itau-cultural/
https://ararasblog.wordpress.com/2012/05/13/feliz-dia-das-maes-zuzu-angel/
https://elle.com.br/moda/100-anos-de-zuzu-angel
https://issuu.com/itaucultural/docs/ocupa____o_zuzu_angel_____caderno_d_404a10432dda51
https://www.memoriascinematograficas.com.br/2021/03/joan-crawford-amiga-de-zuzu-angel.html
https://www.fashionbubbles.com/historia-da-moda/zuzu-angel-2/