A biografia de 500 páginas dessa lenda da história da moda foi devorada em menos de um mês por esses olhos aqui, que há tempos não se prendiam tanto assim por uma leitura (nos tempos de hoje, você sabe como é: o cérebro estragado pela internet). A trajetória de vida de Vivienne nos é contada em terceira pessoa, desde os detalhes da sua infância até seus últimos anos como estilista e ativista. E mesmo pra quem já conhece essa história, afirmo-lhes: são os detalhes que fazem a diferença nessa rica experiência.
Quero descrever essa experiência exaltando 5 tópicos:
1- Entender profundamente como raciocina a mente Westwood
2- Ouvir da boca dela o que foi vivenciar o nascimento do punk
3- Descobrir os detalhes de como foram os saltos das suas transições de carreira
4- Perceber que a persistência é o que germina o talento
5- Compreender porque toda uma carreira na indústria de moda desembocou em um sincero trabalho no ativismo ambiental
Vamos lá:
Entender profundamente como raciocina a mente Westwood
Dizem que a gente só conhece alguém de verdade quando descobrimos como foi a infância desse alguém. O livro te faz entrar em contato com uma época de guerra, na Grã-Bretanha de 1940, quando Vivienne ainda era uma criança bem pequena vivenciando a escassez de recursos, alimentos e objetos em geral. Ela conta que só foi comer uma banana pela primeira vez na vida aos 7 anos de idade. Mesmo nesse contexto, teve o privilégio de ter tido uma boa educação e apoio da mãe e do pai na sua formação - o que, acredito eu, possa ter creditado muita estrutura à confiança em si mesma na fase adulta. Seu principal prazer era mergulhar em livros desde muito pequena, um hábito que imagino também ter contribuído muito para a criação de um profundo repertório cultural e intelectual, e que seria usado nas suas criações inovadoras do futuro.
As primeiras noções de “faça você mesmo” (o famoso DIY do punk) também começa na sua infância, pela necessidade de consertar as coisas quando elas quebravam em época de segunda guerra mundial. Improviso, busca por soluções e uma tentativa lúdica por parte dos familiares de não deixarem essa realidade austera do mundo afetarem tanto assim a infância de Vivienne e seus dois irmãos.
Ouvir da boca dela o que foi vivenciar o nascimento do punk
Sua história no punk, como todo grande fã de Vivienne Westwood sabe, começa com uma parceria - conturbada, difícil e excêntrica, mas que lhe introduziu a uma nova forma de fazer arte. Ela era uma mulher recém solteira com um filho pequeno quando conheceu Malcom Mclaren, um garoto mais jovem, amigo de seu irmão. Esse garoto excêntrico, idealista e extremamente irresponsável, com todos os seus nítidos traços de mommy issues se uniu a Vivienne em uma parceria amorosa e artística. Tiveram um filho e uma marca juntos - ambos negligenciados pelo pai, sendo o primeiro muito mais do que o segundo. Aquela famosa história antiguíssima, onde a mulher faz todo o trabalho duro enquanto o homem mais atrapalha do que ajuda.
Ainda assim, Vivienne é bem sincera quando também exalta os pontos positivos do que foi sua aliança com Malcom: a sua criatividade e perspicácia para com a cultura e política eram especiais. Trouxe a ela referências de arte e o incentivo para se vestir cada vez mais de uma forma única, que chamasse atenção por onde passava (quase como se ele estivesse brincando de boneca). Trabalhando como professora até então, sua luta financeira para sustentar os dois filhos praticamente sozinha a fez engajar-se cada vez mais na criação de roupas. Essa jornada se iniciou por volta de 1971, e suas inspirações primárias eram em referências do rock anos 50 (a vestimenta Teddy Boys, por exemplo). Com o tempo, a evolução desse estilo foi se compondo por bricolagens, camisetas rasgadas e jeans descosturado, misturando-se com referências retrô e grandes slogans estampados como mensagens explícitas nas peças de roupa. Abriram uma loja no número 430 da King’s Road em Londres, lugar que naturalmente se tornou o point das bandas de rock e membros da subcultura em geral. Assim, nascia um lugar com uma áurea única na cidade, que foi chamado por diferentes nomes ao longo da década: Let It Rock, SEX, Too Fast too Live too Young too Die e por aí vai.
Nesse capítulo punk, o que mais fascinou foi saber mais detalhes sobre o processo de fabricação dessas primeiras roupas, principalmente suas famosas camisetas (que hoje se encontram no site do Metropolitan Museum of Art). Como conta seu filho Joe, ele se lembra de quando criança ver a mãe estampar uma camiseta da Marylin Monroe com mijo na cara, e perguntar: você gosta ou não dela? E sua mãe dizer: “eu gosto dela, não é disso que se trata. Eu só quero chocar as pessoas”.
Enquanto Vivienne se encarregava pela maior parte do trabalho de fabricação das roupas da loja, Malcom também se envolvia na cena da música, empresariando bandas como o New York Dolls nos Estados Unidos (fato que também contribuiu para a mistura dos estilos punk americano e inglês nos anos 70), e mais tarde a banda que carrega a início da história do punk londrino, o Sex Pistols. No livro, temos relatos bem crus de Vivienne e suas lembranças da convivência com a banda. Achei notório quando ela disse que gostava muito de Sid Vicious, mas que claramente foi um erro recruta-lo para a banda por suas falhas de caráter e mais tarde, seu profundo vício em drogas. Também temos, spoiler: a afirmação de que ele admitiu para Malcom que matou Nancy.
No mais, seu envolvimento com a banda foi bem mais superficial do que Malcom. Ela diz: “Simplesmente não me lembro de muito a respeito da coisa toda do Sex Pistols. Estava muito ocupada. Tinha dois filhos pequenos. Eu só ia as apresentações se realmente achasse que precisavam da minha ajuda”. Essa é uma fala que descreve bem a essência de toda essa combinação: uma mulher por volta de seus 30 e poucos (mais velha do que os demais envolvidos), responsável por duas crianças enquanto ganha seu dinheiro vendendo roupas para punks. Ambos os filhos contribuem bastante para os relatos ao longo do livro, e dizem não sentirem nenhum remorso para com essa época, achando divertido o fato de terem uma mãe “diferente”. Mas Vivienne é recorrente em dizer que reconhece a negligência e a falta de tempo ou atenção devida que eles deveriam ter quando crianças, por estar sempre trabalhando.
Não estando imune as ondas de violência ao seu redor (ela chegou a passar a noite na cadeia, após uma briga generalizada em uma festa ou show do Sex Pistols, preocupada com os filhos em casa sozinhos sem saber o que havia acontecido com a mãe), diz nunca ter sentido real medo de nada e de lugar nenhum. Podemos ver o quanto as crianças foram sua principal âncora para manter os pés no chão em meio as ofertas de drogas, brigas e confusões em geral da cena punk dos anos 70. De fato, ela se posicionou como “a trabalhadora das roupas”.
Descobrir os detalhes de como foram os saltos das suas transições de carreira
Uma intensa criatividade e força de vontade para colocar a mão na massa, mas inexperiência com negócios e dinheiro fez com que Vivienne tivesse diversos problemas financeiros ao longo de sua primeira década de trabalho. O gerente da loja, viciado em heroína, roubou por anos a fio grande parte do dinheiro que entrava - e só foi descoberto anos depois. Já desfilava suas peças em passarelas, mas não tinha retorno financeiro significativo em seus primeiros anos.
Seus designs inovadores pra época chamavam cada vez mais atenção, e acredito que ela tenha encontrado força principalmente nisso. Sabia que era capaz de inventar um jeito novo de fazer roupas, buscando referências em livros de história (sua primeira coleção de passarela “Piratas” possui modelagens inspiradas nas históricas roupas de navegadores, misturadas as promessas de mudança da Revolução Francesa). A moda tinha um shape específico na década de 80 (ombros largos, postura reta e cintura fina), e Vivienne nos trouxe de volta os corsets da era vitoriana repaginados, feitos com materiais e modelagem bem mais confortável do que os modelos de época para o corpo feminino. Esse é outro grande ponto: em meio aos grandes estilistas mundiais da época, ela era uma das únicas estilistas mulher. Sua preocupação com a modelagem sempre priorizou o conforto (ou algo próximo disso) para os corpos das modelos. Mas ela também se contradiz (em diversos momentos da história, sem problema nenhum em admitir isso). Afinal, seus sapatos de salto eram tão gigantes que nem Naomi Campbell conseguiu segura-los em passarela - a queda tão épica do mundo da moda, que foi muito bem recebida por Vivienne e pela mídia em geral.
Perceber que a persistência é o que germina o talento
Vivienne recebeu muitas ajudas ao longo da trajetória, vinda de pessoas que realmente acreditavam no seu trabalho e talento. O detalhe que mais me tocou nesse livro inteiro de quase 500 páginas foi ler que, quando já estava há anos fazendo desfiles e quase se afundando em dívidas, ela e seu filho Joe trabalhavam e costuravam à luz de velas no verão de 1986, porque a energia elétrica havia sido cortada devido ao não pagamento. Cobradores vinham a loja o tempo todo, mas essa altura, ela já tinha angariado tantos fãs sinceros, e com a ajuda de alguns compradores que contribuíram para a continuidade da marca, comprando as peças da última coleção lançada (Mini Crini), pode prosseguir trabalhando.
Continuar, mesmo que as condições não pareçam favoráveis - essa é a postura adotada por Vivienne ao longo de toda a história do livro. Para ela, não existiu outra opção que não fosse continuar fazendo roupas, e ela sabia que era boa naquilo.
Compreender porque toda uma carreira na indústria de moda desembocou em um sincero trabalho no ativismo ambiental
Vivienne Westwood nunca deixou o punk, e ela prova através do seu ativismo: nos anos 2000, começou a se engajar em causas ambientais com foco principal na floresta tropical, arrecadando milhares e milhões de libras através das suas próprias vendas e de pedidos à pessoas que conheceu ao longo do caminho. Acredito que, por ter contato direto com a indústria da moda e ver de perto todas as toneladas de desperdício de tecido, fabricações desenfreadas de má qualidade e uma profunda negligência com os recursos ambientais, fora tocada em um profundo lugar específico: o de quem se importa. De quem navegou por diferentes facetas da vida, desde as vivências da infância, a vasta literatura, do trabalho duro para se conseguir o mínimo no mês para passarelas mundiais, dinheiro, fama. Talvez pelas coincidências da vida, essa estilista seguiu por um caminho diferente da maioria pensando apenas no próprio acumulo de dinheiro. De fato, ela gostaria de que as crianças das próximas gerações tivessem condições dignas de se alimentar e viver, ao invés de apenas sobreviver em um planeta sem recursos, consumido pelo capital desenfreado.
Essa fidelidade aos princípios me faz admira-la para muito além do seu trabalho com roupas ou visuais. Atualmente, acho que podemos ver com clareza de que qualquer um faz roupas. Mas definitivamente, não é qualquer um que faz uma história da moda na própria vida.
Vivienne Westwood, eternamente a rainha punk <3
Você apareceu para mim no tiktok e me apresentou essa rede social que não estou entendendo ainda mas estou gostando, não me pareceu hostil como as outras… adorei ler seus textos da Viviane e Zuzu! Há quanto tempo não lia um texto tipo blog… sem aquele formato insuportável do instagram … adorei! Obg